quarta-feira, 3 de março de 2010

A Suave Subversão da Velhice -


Revista Época

Edição 188 24/12/2001

A suave subversão da velhice


O mundo de grandes solidões e pequenas delicadezas de uma casa de velhos
Rosa Bela Ohanian, de 89 anos
Viúva, sem filhos, até oito meses atrás ela morava sozinha num casarão em Copacabana. Foi colocada na instituição pelos sobrinhos. Nasceu em Nova York, morou na Dinamarca, foi funcionária diplomática em Washington. Canta e toca piano. Sente falta de novidades e conversas. Emerge apenas de tempos em tempos do quarto e da melancolia. Então canta
De repente eles chegaram lá, ao portão de ferro da Casa São Luiz para a Velhice. A vida inteira espremida numa mala de mão. Deixaram para trás a longa teia de delicadezas, as décadas todas de embate entre anseio e possibilidade. A família, os móveis, a vizinhança, as ranhuras das paredes, um copo na pia, o desenho do corpo no colchão. Reduzidos a um único tempo verbal, o pretérito, com suspeito presente e um futuro que ninguém quer.
Eles também pensaram que a velhice era destino de terceiros. Jamais suspeitaram que estariam nessa situação. Lançados numa casa que não é a sua, entre móveis estranhos, faces que não reconhecem, lembranças que não se encaixam. Não foi assim com seus pais e avós. Atropelados pelo bonde da modernidade em que a juventude é um valor em si, foram deixados na porta porque outros decidiram que o tempo deles acabou.
“Nem quis me despedir de minha casa”, conta Sandra Carvalho. “Só pedi a meu filho que me trouxesse a estante com os bibelôs, um sofá, a cadeira de braço, uma mesa e meus retratos. E, desde então, vivo com o que sobrou.” Sandra veio com o marido doente. Ele morreu há oito meses. Sandra ficou. Os netos cresceram nos retratos, os olhos dos filhos conquistaram novas nuances, a casa foi alugada para outro. Até a cidade ganhou e perdeu. Sandra não viu.
Há algo de trágico no portão de ferro da Casa São Luiz. Melhor que a maioria, a instituição é limpa, decente e cheia de mimos. Igual a todas, é a última estação do trem, abrigo inventado para esconder os que não têm outro lugar, sobrevivem na brecha criada pelo avanço da medicina e pelas aflições da vida moderna. Também a casa uma anciã, completou 111 anos de existência desenrolados no bairro carioca do Caju, o mesmo do cemitério, destino final de todos que estão ali.
Sandra Carvalho, de 80 anos
Ela descobriu-se só, entre as sobras do lar que perdeu, a saudade do marido que partiu oito meses atrás e as fotografias da família. Foi colocada na casa pelo filho com melhor situação econômica. Queria viver com ele nos Estados Unidos. Não dá. Sandra diz que se apagou
O Visconde Ferreira D’Almeida, fundador de fé fervorosa, segue cada passo no caminho de árvores rumo ao coração do lugar. Seu olhar de bronze é onipresente na vigília dos 257 velhos que compartilham uma cidadela dividida em seis torres batizadas com nomes de santos ou de famílias quatrocentonas do Rio de Janeiro que no passado fizeram polpudas doações para garantir uma vaga no céu.
Apesar da solidez da estátua do fundador, a instituição mudou com o tempo. Nasceu antes da invenção da aposentadoria, para abrigar os operários das fábricas de tecido do aristocrata quando já não tivessem forças para mover as máquinas. Um século depois, é habitada por doutores e comerciantes, empresários e intelectuais. Gente de classe média e também de sobrenome ilustre, capaz de pagar uma suíte particular. Restaram 54 paridos pelo berço original de desvalidos. Operários, empregados do comércio, costureiras, lavadeiras, domésticas que descansam o corpo em camas gratuitas de dormitórios arejados, mas coletivos. Como lá fora, entre os pobres e os ricos há uma longa escadaria, o poder inversamente proporcional ao número de camas que abrigam sono e sobressaltos.
Sandra Carvalho, mãe de três filhos, avó de seis netos e bisavó de dois bisnetos, tem a sorte de um quarto só seu. Do contrário, teria apenas um armário para guardar 80 anos de vida. Chegou ao portão pelas mãos do filho do meio. Queria morar com ele nos Estados Unidos. Não dá. “Seria muito complicado”, convence-se. “Queria ser cantora, fui costureira. Minha vida foi sempre tão cheia de controvérsias...” Acaricia o sorriso dos retratos do álbum de casamento, murmura: “Eu me apaguei aqui. É, me apaguei”.
Sandra, com o todos, é vítima da brutalidade de um tempo em mutação. Os passos lentos demais para a velocidade de um mundo que não perdoa quedas. Os velhos perderam afeto, amizade e calor, ganharam tempo. Vivem mais e melhor que seus pais e avós. Vivem mais sós. A morte social chega antes da derradeira batida do coração. Tornaram-se provas inoportunas de que a sociedade que os deixou no portão pisa em terreno pantanoso. Decidem na soleira que querem viver. E o fazem da forma possível, até porque têm idade suficiente para compreender que o possível não é pouco.


Paulo Serrado Filho, de 71 anos
Ele foi boêmio. Um acidente de carro lhe causou danos permanentes nas duas pernas. Depois, teve um enfarte. Solteiro e sem filhos, não faz questão de ser maduro. Hospedou-se na casa há três anos porque tem medo de estar lá fora. Tem fantasias sexuais com Cyd Charisse
No lugar em que foram apartados do tempo, do mundo, da família, reeditam diariamente resistência e insurreição. Desejam. Um sabor diferente no cardápio, a fantasia sexual com a musa hoje mais velha que eles, o jornal do dia seguinte. Enquanto desejarem, ainda que apartados do mundo, estarão vivos. Encarquilhados, vacilantes, são a lembrança incômoda não do passado, mas do futuro de todos. Se a velhice de hoje é aniquilada, a de amanhã já nasce morta. Porque viver, para além das conquistas da ciência, é mais que respirar.
Aos 74 anos, a comerciante portuguesa Fermelinda Paes Campos cumpre o ritual de rebeldia vestindo-se para festa todos os dias. Cobre-se de pérolas, de tecidos vaporosos. “Esses hormônios não me deixam. Estou explodindo”, confidencia. Preso a uma cadeira de rodas, aos 71 anos, o jornalista Paulo Serrado sonha que cavalga águias sobre as montanhas. “Acordo com cara de tacho, mas tudo bem.” Sem poder mais dançar, ele, que foi apelidado de Fred Astaire na boemia de Copacabana, abraça-se ao retrato de Cyd Charisse e rodopia em fantasias. Rosa Bela Ohanian, de 89 anos, morou na Europa e nos Estados Unidos, foi funcionária diplomática em Washington, fala quatro línguas. Emerge da melancolia para entoar uma canção de amor em dinamarquês. “Amo por toda a vida, não por um segundo.”
Nos últimos passos, a vida torna-se um filme em que se desejaria acrescentar personagens, eliminar cenas, avivar as cores da fotografia. Trocar a trilha de música de elevador por um heavy metal. Ou pela “Cavalgada das Valquírias”, um tango de Piazzolla. Aos 86 anos, o mestre-de-obras Guilherme Coelho prefere viver de arrependimento. Lamenta a carne com que se lambuzou na mocidade, todo ele transformado em espírito, a Bíblia ao alcance da mão. Por seis meses ficou tetraplégico, à mercê de fraldas e enfermeiras, a mente presa ao corpo. Nunca esquecerá o pavor da impotência, a enfermeira do hospital que atirou um telefone contra seu corpo paralisado. Quando o dedão do pé mexeu o lençol, Guilherme concluiu que era um milagre. Deus lhe havia concedido tempo para preparar-se para a morte. Guilherme decidiu a canção de seus derradeiros dias.
Eliane Brum (texto)

Frases, verdades, virtudes...

"Fiquei magoado, não por me teres mentido, mas por não poder voltar a acreditar-te." Friedrich Nietzsche

" Ser bom é fácil. O difícil é ser justo." Vitor Hugo

"Cada um de nós tem a todos como mortais menos a si mesmo." Sigmund Freud

EU ESCREVO..."Eu escrevo sem esperança de que o que eu escrevo altere qualquer coisa. Não altera em nada... Porque no fundo a gente não está querendo alterar as coisas. A gente está querendo desabrochar de um modo ou de outro..."Clarice Lispector